quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Ô, moço.

Já nem olho mais nos olhos dos mendigos que na rua cruzo para tentar não sentir mal ao negar-lhes as esmolas que carrego no bolso, na verdade quando cruzo aperto o passo e não olho nem para o espaço chão, pois é muito perto de onde eles geralmente estão. Sendo assim tento olhar no horizonte, não muito distante por causa dos prédios e carros, tentando fingir para eles que os ignoro e tentando me convencer que o "Moço" ou o "Senhor" que dizem em minha direção na verdade são para o moço ou senhor que atrás de mim caminha com a mesma intenção. Já nem me preocupo mais em escrever em versos e poematizar essas coisas pois nenhum poema é tão sujo ou belo suficiente para descrever qualquer miséria, tampouco faço espaços parágrafos ou pulo linhas para organizar outras idéias já que um texto monobloco há de ser mais preciso para demonstrar o caos que se passa dentro de mim quando sei que mesmo sem vê-los me julgam aqueles olhos que não olho mas vejo e se assim resolvo proseguir vejo que pontos finais e vírgulas são também inúteis aos olhos de quem vê que aquilo que se tenta ignorar não faz pausas nem pontos finais pois são muitas pessoas cruzando e passando muitos moços e senhores e algumas esmolas de culpa e pena caem por aí e minguam e rolam pela calçada e pela sarjeta e pela rua e pelo viaduto e pelo espaço e assim preenchem osespaçosdacidade
eimpedemquesevejaohorizonteeaquelepequenopedaçodocéuquevejonãoésuficienteparafazercomqueeurezeemesmoquefosseeunãorezariaporqueEUNÃOACREDITOEÉPORISSOQUE
___EU.
____ME.
_______NEGO.
_______A.
_______OLHAR.
____NOS.
____OLHOS.
__________DOS.
___________MENDIGOS.
___________QUE.
_______NA.
_____RUA.
___CRUZO!


..."MOÇO, VOCÊ tem um real pr..."
..
..
ufa!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Charneca

_Ela fôra bela um dia.
_O princípio de calvice e a esclerose ainda não lhe tiraram da cabeça as memórias daqueles dias...
_Ah, aqueles dias... Ela quase podia sentir o cheiro, quase podia sentir o gosto tocar-lhe as papilas. Quase.
_E ela se lembrou do colégio... é! do colégio! Aqueles sete anos incríveis! Ah, a beleza... a beleza de seus gestos, do seu corpo... Ela se lembrou de quando os garotos não só se curvavam aos seus pés, mas sob seus pés. Sua beleza era impiedosa, como um arcanjo bruto caído dos céus semeava em cabeças juvenis o desejo que crescia com os hormônios da idade, ela sabia disso e se ria. Podia ver pelos olhos dos rapazes quais já tinham se masturbado pensando nela, e eram tantos! Aquele gozo, aquele poder!! Era como se sua femininidade urrasse!!! Ela correspondia aos olhares com uma singela mordida nos lábios inferiores e com aquele olhar.
_O olhar... se ela pelo menos se lembrasse como fazer aquele olhar... como mirar os olhos, como baixar de leve as pálpebras! Ela se esquecera. Ou isso, ou seus olhos perderam o brilho e suas rugas lhe pesaram as pálpebras e rasgaram-lhe a face. Ela pedia a Deus para que tivesse esquecido.
_Sete anos... sete anos durara seu reinado. Fôra eleita presidente da sua sala sem nem mesmo ter se candidatado, e fôra reeleita no ano seguinte mesmo tendo feito nada em prol dos seus súditos. Quando os professores lhe disseram que como presidente ela teria que tomar certas atitudes e responsabilidades para o bem de seus colegas, abriu mão do cargo e viu que era muito mais fácil ser primeira dama.
_Sempre pudera escolher seus garotos, seus namorados e até mesmo seu falecido marido. Sempre controlou a mente masculina como um gato controla seu dono. Ela escolheu seu primeiro beijo, seu primeiro amasso e à dedo escolheu, no último ano do colegial, o garoto, e numa noite de Sábado ela tirou a virgindade dele, e dela.
_E a formatura! O ápice da sua juventude! Uma última noite em que ela brindou com álcool e saboreou à bocadas largas sua juventude adoçada com aspartame.
_Foi aí que ela pensou: "Às vezes me arrependo... que tipo de pessoa tira a própria virgindade?"
_E quando passou por um buraco avistou seu ponto logo à frente, puxou bruscamente a cordinha e o motorista pisou forte no freio. Ela quase não conseguiu se segurar, andou até ele resmungando alto, tirou da bolsa a sua identidade amarela e desbotada e, com um gosto amargo no fundo da língua, mostrou-lhe para provar que, realmente, toda a sua beleza esvaeceu...

"E ainda faltam os três degraus..."


Título modificado em 11/05/2010, de Futil para Charneca.