domingo, 31 de maio de 2009

Pra onde foi?

Então eu paro de andar e me sento no ponto de ônibus.

Olho para a rua, mas os guarda-chuvas e as pessoas de pé não permitem que eu enxergue qual ônibus está chegando, me levanto. Vejo que não há ninguém sentado, todos estão de pé para poder ver qual ônibus está chegando, ficando nas pontas dos pés e esticando seus pescoços por cima dos guarda-chuvas.

Sento-me novamente.

Começo a observar as pessoas... Trabalham o dia todo e depois de toda a jornada não se dão nem o direito de sentar. Ficam em pé no ponto, para depois ficarem em pé no ônibus lotado, para finalmente poderem se sentar no sofá de casa para ver a novela, o ópio das donas de casa...

As pessoas acham que gostam de novela. Do glamour, da riqueza, do drama, da emoção, da beleza, da fantasia, da alegria e da tristeza, e de outras coisas que também acham que não têm nas próprias vidas. É um engano. Debaixo do nariz global dessas pessoas está o que elas realmente gostam, o sofá.

Depois de 8 horas de trabalho em que não se pode perder um segundo sequer, as pessoas dedicam aquela hora à perda de tempo, à inutilidade, ao "programa em família", ao emburrecimento voluntário que, inconscientemente, é um pedido de um pedacinho do nosso cérebro que com o passar dos dias vai se atrofiando e caducando contra sua vontade. Tal pedacinho chama-se consciência.

É isso mesmo, aquela que quando nascemos ocupa quase todo o cérebro, e à medida que vamos crescendo ela vai diminuindo, sendo que em alguns casos ela some, e em outros ela volta a crescer e passa a oscilar até a hora da nossa morte. A mesma que vai sendo turvada e moldada pelos valores platônicos e aristotélicos que vão sendo passados de geração a geração pelo papai e pela mamãe e pela tia da escolinha e pelo professor da universidade, aquela que às vezes nos impede e outras vezes nos motiva.

Pois é, é esse pedacinho que pede que repousemos nossas bundas em uma superfície macia, fofinha, no calor e no conforto de nossos lares para o corpo poder descansar.

Isso pode até parecer uma coisa boa, mas não é. Quando tal consciência age inconscientemente é sinal de que ela já está muito fraca, cedendo aos medos do fantástico show da vida.

As pessoas se privam de sentar, pois têm medo de perder o ônibus. As pessoas têm medo de perder o ônibus, pois têm medo de chegar tarde em casa e aí pegam um ônibus lotado, se privando, novamente, de sentar. As pessoas têm medo de chegar tarde em casa por ter medo de ser assaltadas,ou pior, por ter medo de perder a novela, e as pessoas tem medo de perder a novela por terem medo de perder tudo aquilo que acham que não têm em suas próprias vidas...

E assim a falta de consciência nos priva de sentar, de tomar aquele cafezinho, ou cervejinha, com os amigos e de esperar pacificamente pelo ônibus que nos levará para casa.

Quem sabe algum dia nossa consciência volte a nos privar até mesmo do uso dos guarda-chuvas, que volte a nos privar do medo de pegar um resfriado, ou de abrir os braços e sorrir com as gotas tocando o rosto e entrando pela boca, ou de se preocupar com que os outros estariam pensando enquanto estivéssemos fazendo tudo isso...

E você? Quando foi a última vez que tomou, conscientemente, um banho chuva?

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Teletransporte

(Bom, nesses últimos tempos estou passando por uma estiagem de inspiração e tempo para escrever, então estou postando aqui um poema antigo que fiz)


Bípedes se movem para o transporte na estação
Se encocham, se encostam, se esfregam,
Se atropelam atravessando a porteira estreita
Se amontoam
Empoleirados em seus quadrados de 30 centímetros
Se esbarram, timidamente.

Os machos devoram com os olhos
Coxas, peitos, rabos.
As fêmeas tentam se preservar
Umas se escondem, outras tentam se mostrar

Olham para o chão, para os lados
Ou qualquer direção.
Através da cerca, do curral, do horizonte,
Enxergam mortamente o nada,
Mesmo sem terem sido abatidos ainda...
Fora do curral tudo é matadouro

Por alguns segundos o transporte pára.
Entram bípedes, saem bípedes... se amontoam,
Se empoleram... é o rodízio.
Um apito sinaliza o fechamento da porteira
O transporte anda.

Todo rodízio é igual
Mais bípedes, menos bípedes, peitos, coxas, rabos,
Rugas, espinhas, fones, bolsas, doenças, sujeira,
Carne, propaganda. Janelas...
Tudo vazio

O calor, o aperto, o desconforto...
Nada disso encomoda.
Caleijamento mental
C O T I D I A N A M E N T E

O transporte pára.
Os bípedes se movem novamente
A viagem termina, e tudo o que se passou
entre o ponto de partida e o ponto de chegada
foi um piscar de olhos,
como um teletransporte.

Enjaulados nascem e são abatidos,
embalados e rotulados
nos supermercados são vendidos
Bípedes depenados, vestidos.
E entre o início e o fim do processo,
um piscar de olhos de vidro
secos e opacos
C O T I D I A N A M E N T E
Como as janelas do metrô.

sábado, 9 de maio de 2009

Em Dó sustenido menor Sonata para piano nº 14 - Opus 27 nº 2


Sonata ao Luar


Adagio sostenuto

quasi una fantasia”...

Era noite. A chuva batia na janela, mas era leve... tão leve que pelas nuvens passava a luz da lua, que iluminava o quarto com um mormaço morto.

No quarto, uma velha, uma defunta, e um mordomo, estáticos.

A tez estava pálida e sob os olhos as olheiras lhe estampavam na cara uma velhice prematura. Os cabelos bem penteados adornavam sua cabeça como se aquilo fosse o seu próprio velório. Os lábios secos e imóveis ainda retinham o pouco de juventude que lhe era arrancada, como uma fruta verde e podre. As mãos frias, cobertas por uma luva branca e fina, ainda tinham forças para segurar firmemente a bandeja de prata.

O corpo já mostrava sinais de degradação, o mau cheiro brotava da carne podre. Falecera já havia algum tempo, é verdade, mas sem banho nem troca de roupas o cheiro empesteava o ar ao seu redor. Ninguém tinha coragem de tocar seu corpo, nem mesmo quem já lhe amara algum dia. Fedia à abandono, à solidão, mesmo com companhia. Ainda assim a expressão com que terminara a vida não era amarga, em sua face tédio e serenidade se perdiam em meio ao nada. As mãos gélidas e duras, com dedos já meio decompostos pelo tempo, tremiam de doença, e os olhos secos e amarelos fitavam aquele corpo com inveja.

O mordomo se inclina, e desfere um passo, e em seguida deste segue um outro. O ranger do chão velho de madeira com as solas dos sapatos pretos e polidos contrapontearam senza surdina com o ranger dos dentes ocos e amarronzados que a velha esfregava movendo de forma quase imperceptível o maxilar.

Ao se aproximar da moribunda o mordomo se inclina com uma das mãos para trás e lhe oferece um copo d’água que repousava sobre a bandeja de prata. A velha entrelaça seus dedos ao redor do copo e, sem retirá-lo da bandeja, move com dificuldade seus olhos em direção à janela. Em seguida move-os de volta e mira o mordomo que, depois de um breve intervalo, lhe acena discreta e positivamente com a cabeça.

A velha retira o copo da bandeja e se levanta, sem pressa e sem esforço.

Era noite. A chuva batia na janela, mas era leve... tão leve que pelas nuvens passava a luz da lua, que iluminava o quarto com um mormaço morto.

No quarto, uma velha, uma defunta, e um mordomo, estáticos.

A velha estica o braço para frente, e sua mão vira, firmemente, como se a doença que lhe afeta os nervos não lhe afetasse a determinação, derramando a água fleumática sobre o rosto da defunta. Um espasmo em sua face quase a faz sorrir. Quando a última gota deixa o copo a velha diz: “Aí está... o seu último banho de chuva.”

Larga o copo, e deixa o quarto.



(Modificado em 24 de agosto, ainda inacabado)