Sonata ao Luar
Adagio sostenuto
“quasi una fantasia”...
Era noite. A chuva batia na janela, mas era leve... tão leve que pelas nuvens passava a luz da lua, que iluminava o quarto com um mormaço morto.
No quarto, uma velha, uma defunta, e um mordomo, estáticos.
A tez estava pálida e sob os olhos as olheiras lhe estampavam na cara uma velhice prematura. Os cabelos bem penteados adornavam sua cabeça como se aquilo fosse o seu próprio velório. Os lábios secos e imóveis ainda retinham o pouco de juventude que lhe era arrancada, como uma fruta verde e podre. As mãos frias, cobertas por uma luva branca e fina, ainda tinham forças para segurar firmemente a bandeja de prata.
O corpo já mostrava sinais de degradação, o mau cheiro brotava da carne podre. Falecera já havia algum tempo, é verdade, mas sem banho nem troca de roupas o cheiro empesteava o ar ao seu redor. Ninguém tinha coragem de tocar seu corpo, nem mesmo quem já lhe amara algum dia. Fedia à abandono, à solidão, mesmo com companhia. Ainda assim a expressão com que terminara a vida não era amarga, em sua face tédio e serenidade se perdiam em meio ao nada. As mãos gélidas e duras, com dedos já meio decompostos pelo tempo, tremiam de doença, e os olhos secos e amarelos fitavam aquele corpo com inveja.
O mordomo se inclina, e desfere um passo, e em seguida deste segue um outro. O ranger do chão velho de madeira com as solas dos sapatos pretos e polidos contrapontearam senza surdina com o ranger dos dentes ocos e amarronzados que a velha esfregava movendo de forma quase imperceptível o maxilar.
Ao se aproximar da moribunda o mordomo se inclina com uma das mãos para trás e lhe oferece um copo d’água que repousava sobre a bandeja de prata. A velha entrelaça seus dedos ao redor do copo e, sem retirá-lo da bandeja, move com dificuldade seus olhos em direção à janela. Em seguida move-os de volta e mira o mordomo que, depois de um breve intervalo, lhe acena discreta e positivamente com a cabeça.
A velha retira o copo da bandeja e se levanta, sem pressa e sem esforço.
Era noite. A chuva batia na janela, mas era leve... tão leve que pelas nuvens passava a luz da lua, que iluminava o quarto com um mormaço morto.
No quarto, uma velha, uma defunta, e um mordomo, estáticos.
A velha estica o braço para frente, e sua mão vira, firmemente, como se a doença que lhe afeta os nervos não lhe afetasse a determinação, derramando a água fleumática sobre o rosto da defunta. Um espasmo em sua face quase a faz sorrir. Quando a última gota deixa o copo a velha diz: “Aí está... o seu último banho de chuva.”
Larga o copo, e deixa o quarto.
(Modificado em 24 de agosto, ainda inacabado)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBrilhante..
ResponderExcluir